A pandemia das casas de apostas online
Convivemos com pandemias de várias naturezas. Temos, entre outras, pandemias de vírus (coronavírus, por exemplo), de deficiências de magnésio e “vitamina” D, de golpes virtuais, de obscurantismo político e de distúrbios mentais (ansiedade e depressão, entre outros). Recentemente, uma nova pandemia invadiu os lares dos brasileiros. Trata-se da verdadeira invasão de casas de apostas online (as bets).
A intensa propaganda das bets pode ser vista e ouvida em praticamente todos os lugares, com especial ênfase para os espaços eletrônicos nas redes sociais. Tentar identificar quantas e quais são essas casas não é uma tarefa fácil. E uma nova parece surgir a cada dia.
“O Ministério da Fazenda recebeu 113 pedidos de autorização de 108 empresas de apostas que desejam operar no Brasil a partir de janeiro de 2025, quando começam a valer as regras da chamada lei das bets./A autorização do governo para que essas empresas operem no país deve sair até 31 de dezembro de 2024. As casas de apostas ainda podem pedir liberação, mas, a partir de agora, a resposta pode levar até cinco meses (150 dias)” (fonte: g1.globo.com). Essa notícia foi veiculada no dia 21 de agosto de 2024.
A notícia menciona a chamada “lei das bets”. Trata-se da Lei n. 14.790, de 29 de dezembro de 2023. Esse diploma legal dispõe sobre: a) o regime de exploração; b) o agente operador de apostas; c) o procedimento de autorização; d) a oferta e a realização de apostas; e) as transações de pagamento; f) os apostadores; g) os prêmios; h) a fiscalização e i) o regime sancionador.
Em relação aos apostadores, o legislador apontou: a) as pessoas impedidas de apostar (como os menores de 18 anos); b) os direitos básicos (aqueles aplicáveis aos consumidores e informação/orientação sobre regras, riscos de perda e transtorno patológico); c) o direito à orientação e ao atendimento e d) as condutas vedadas na oferta de apostas.
Aparentemente, as cautelas postas na legislação reguladora das bets não conseguiram evitar uma série de consequências negativas decorrentes dessa atividade.
Segundo levantamento do Instituto Locomotiva, o número de apostadores cresce em velocidade espantosa. “Nos últimos seis meses, esses aplicativos ganharam 25 milhões de usuários – quase metade do total de 52 milhões de brasileiros que fazem apostas esportivas” (fonte: uol.com.br).
A pesquisa referida indica que 84% desses apostadores novos integram as classes C, D e E. Apenas 16% deles são das classes A e B. Esse perfil dos apostadores causa preocupação crescente em função da limitada educação financeira e da baixa percepção de que utilizam um serviço voltado para o lucro. Infelizmente, a maioria dos apostadores vê na atividade uma mera possibilidade de renda extra.
Inúmeros especialistas mencionam o risco de redução do poder de compra dos consumidores e até algum comprometimento do faturamento do setor de varejo. A pesquisa do Instituto Locomotiva apurou que 37% dos apostadores reconheceram ter utilizado recursos que originalmente seriam “para coisas importantes”, 45% deles experimentaram prejuízos financeiros significativos e 86% dos usuários de apostas online estão endividados. “Em junho, a SBVC (Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo) divulgou um estudo que mostrava que 63% das pessoas que usavam as bets ficaram com renda menor. Por causa disso, 23% deixaram de comprar roupas, 19% reduziram as compras no supermercado e o mesmo percentual abriu mão de viajar” (fonte: uol.com.br).
Os impactos sobre a saúde mental dos apostadores também foi objeto de análise na pesquisa do Instituto Locomotiva. 60% dos usuários de apostas online reconheceram o efeito negativo no plano psicológico. Cerca de 51% apontaram o aumento da ansiedade e 47% relataram usar as apostas como elemento de fuga em relação a problemas pessoais de várias ordens.
“O Brasil já é o terceiro maior mercado de apostas online do mundo. Segundo a consultoria PwC, elas movimentaram em 2023 entre R$ 67,1 bilhões e R$ 97,6 bilhões, quase 1% do PIB, e neste ano devem chegar a R$ 130 bilhões. A Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo constatou que a renda de dois em três apostadores foi comprometida. Segundo o Banco Itaú, os jogadores perderam R$ 23,9 bilhões para as casas de apostas – muitas delas sem sede no País, à margem da arrecadação. Pelos cálculos da PwC, as apostas devoraram 1,38% do orçamento das classes D e E; o Santander estimou em 2,7%. Ambas as análises, ainda que sem cifras precisas, dão por certo o prejuízo a outros setores da economia” (fonte: estadao.com.br).
Algumas das consequências deletérias da invasão das casas de apostas online não possuem mensuração, ao menos por enquanto. A utilização da atividade para lavagem de dinheiro é uma grande preocupação. Inúmeros tipos de fraudes podem ser realizadas a partir da imensa facilidade das apostas e das celebridades contratadas para “vender ilusões”. Existem avaliações que ligam as apostas online ao aumento do absenteísmo no trabalho e da violência doméstica.
Esse quadro preocupante indica que é preciso dar uma atenção bem maior ao universo das apostas online. Dois caminhos devem ser trilhados com ênfase e urgência: a) profundas restrições no campo da publicidade e b) fortíssima oneração por intermédio da tributação. O tratamento dado ao fumo pode ser utilizado como importante parâmetro de atuação do Poder Público e dos setores organizados da sociedade civil.
O exercício da liberdade individual não pode ser apresentado como uma espécie de álibi para a realização de atividades econômicas nitidamente predatórias. Com efeito, a Constituição expressamente define no seu art. 220 que é preciso proteger a pessoa e a família de “produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde”, notadamente por intermédio de restrições à propaganda.
Parece fora de dúvida que a sociedade brasileira, em particular seus segmentos mais vulneráveis, está submetida, de forma indevida, a extrema agressividade das casas de apostas online. A busca por ganhos financeiros (enormes, diga-se de passagem) não pode ser efetivada com a realização de todos os malefícios mencionados. Em suma, a atividade econômica no Brasil não pode ser uma espécie de vale tudo por dinheiro.